Tuesday, October 30, 2007

Pintor da liberdade.

Havia uma praça numa cidade do interior, tão organizada e bonita que dava gosto de se viver. As ruas simples, com um asfalto liso, calçada branca de pedras de calcário, plaquinhas de sinalização e nomes das ruas em cada esquina.Não havia poluição visual. Tudo era agradável aos olhos e não se via uma propaganda ou "outdoor".

Nessa praça, todo dia, trabalhavam ali três pintores. Wiliam era um verdadeiro artista, fazia quadros lindos, que todos queriam ter para enfeitar suas casas. Mas Wiliam cobrava muito caro, os quadros eram uma verdadeira raridade. Wiliam sabia que podia cobrar o preço que queria, pois tinha muita fama, e além disso, ele produzia tons de cores que ninguém sabia imitar, e tinha uma visão da vida de um ângulo que só quem entende o pensamento popular podia ter.

Luis era um pintor genial, e de pensamento alternativo. Ele dava gratuitamente suas obras, para quem apreciasse e pedisse. Ele tinha qualidade para fazer o que bem entendia, e mostrava em suas pinturas um mundo diferente, em que se podia perceber o senso de solidariedade das pessoas ali representadas. As paisagens sempre tinham um toque de liberdade, vistas de um ângulo em que as pessoas que as apreciavam sentiam-se voando. Mas por algum motivo que lhe fugia do conhecimento, ele se via triste, pois não entendia porque suas obras não eram populares apesar da qualidade. Tinha pouquíssimos interessados, que realmente lhe elogiavam e colocavam suas pinturas em locais de destaque. Por outro lado, esses poucos eram muito fiéis, e isso lhe alegrava. Eles defendiam com unhas e dentes quem falasse mal de suas obras, e comparavam elas com as pinturas mais famosas do mundo!

Antônio era muito desajeitado. Sempre se borrava e não era raro vê-lo com as barbas pintadas de todas as cores. Um dia ele deixou cair a barba num pote de tinta vermelha e passou uma semana assim até conseguir se limpar. Isso lhe deu o apelido de Tonhão Barba Vermelha, mas o pessoal para encurtar chamava ele apenas de "Vermêi". Ele não sabia pintar muito bem, tinha vindo de uma familia muito pobre e nunca tivera aulas. Ganhou de pequeno uma caixa de tinta à óleo e passou a pintar tudo o que via, e ficou um expert na arte de replicar. Ele ganhava a vida dos trocados que conseguia vendendo réplicas quase perfeitas dos quadros de Wiliam. Wiliam sabia disso, mas como Antônio acabava por ajudar a fazer propaganda de seu nome, não interferia.

E a vida seguia bela e alegre nesse ambiente assim formado, com exceção de Luis, que continuava cabisbaixo e pensativo... Luis tentava descobrir um modo de fazerem as pessoas gostarem dos seus quadros. Mas quadros são assim mesmo, não há como fazer pessoas gostarem do seu ponto de vista. E ele vivia esse dilema, todo dia vendo mais e mais gente comprando as réplicas de Antônio por uma mixaria, ao preferir os seus lindos quadros de graça! E Wiliam tirando proveito, viajando para dar palestras, fazendo exposições, ganhando grana alta pela venda de seus originais, e ficando mundialmente famoso.

Luis não podia contar com a ajuda da publicidade gratuita que Antônio fazia para Wiliam, pois Antônio nunca iria poder fazer uma réplica de um quadro de Luis se este dava os quadros de graça. Não era possível Antônio faturar nada desse jeito...

Até que um dia Luis pensou que a única maneira de tornar seus quadros mais populares seria entender como pensam os consumidores que gostam dos quadros de Wiliam. E então Luis passou por um período de estudos, para se adaptar à nova realidade que queria se inserir. Se era para ficar mundialmente famoso, ele teria que dar ao povo o que o povo queria.

Então Luis caminhou pela praça e foi até Wiliam. Este estava pintando um quadro da praia da enseada. Luis comentou que iria pintar também um quadro da mesma paisagem, no que Wiliam disse que ele fizesse o que bem entendesse, pois a praia era pública.

Luis então pensou muito em qual posição deveria expressar a paisagem. Tinha vontade de colocar a vista olhada de uma asa-delta flutuando livremente sobre a praia... Mas lembrou de tudo o que tinha estudado sobre a opinião popular, e decidiu que era melhor fazer uma paisagem mais pé-no-chão... Fez a vista do ângulo de um banhista sentado em uma cadeira de praia, tomando uma cerveja, muita gente bonita passeando, lindas ondas do mar.

Wiliam, por coincidência, fez a praia vista por uma pessoa sentada na praia também. Mas essa pessoa estava sentada na areia, ao lado de uma criança, e faziam um castelo. Também tinha no quadro lindas pessoas passeando e um belo mar revoltoso.

Antônio, pela primeira vez, ficou em dúvida de qual copiar, mas como ele sabia que Luis iria dar seu quadro de graça, logo esse pensamento lhe saiu da cabeça, e ele fez uma réplica quase perfeita do quadro de Wiliam.

A grande maioria das pessoas que passavam pela praça nem conheciam Luis e seu trabalho direito, mas já apreciavam o trabalho de Wiliam há muito tempo. Essas pessoas ficaram maravilhadas com a paisagem da praia da enseada, e logo ambos os quadros estavam vendidos, tanto o original quanto a réplica.

Luis ainda esperava que seu destino mudasse para melhor, até que ouviu de longe alguém falar que sua réplica não era tão precisa quanto à de Antônio. Ele ficou muito triste com o comentário, mas decidiu esperar mais um pouco para ouvir as palavras reconfortantes de seus poucos e fiéis "clientes" que entendiam muito melhor sua expressão artística. Afinal, essas pessoas desconhecidas que nunca apreciaram sua obra, não sabiam de suas qualidades como pintor.

Então finalmente chegou um de seus mais fervorosos defensores, para apreciar seu quadro. E este senhor, que sempre defendeu a liberdade e o ponto de vista alternativo, ficou tão decepcionado ao ver aquele quadro, que tinha perdido todo o brilho do artista que era diferente. Este senhor disse a Luis que ele perdeu o foco, que seu quadro não expressava mais a vontade de estar acima de todos os pequenos infortúnios da vida e de ter um ponto-de-vista diferente, opção única para ver o mundo com outros olhos. E esse senhor não quis o quadro nem de graça, saiu com passos firmes e deixou Luis com os olhos cheios de água, sentado no banco da praça.

Muitos meses se passaram, e Luis não conseguia se encaixar nesse novo modelo que ele tinha inventado... Ele perdera a dignidade ao ser comparado com um replicador de quadros, e perdera seus melhores apreciadores, por não estar mais atingindo o público que antes se interessava por suas obras.

Até que farto de lutar contra sua própria natureza, Luis voltou a pintar quadros de céus azúis que mostravam a liberdade de voar, de ser diferente, e de ter sua própria e original opinião sobre o mundo. Seus poucos amigos voltaram a defender seus quadros com amor e fidelidade, e até mesmo a grande maioria da população daquela cidade que só gostava dos quadros de Wiliam passaram a comentar que Luis tinha uma boa qualidade artística, apesar de nunca levarem seus quadros e continuarem achando seu ponto-de-vista estranho.